MOÇAMBIQUE
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sites próprios

J. Antero Ferreira
Joaquim
Antero Ferreira, Furriel Mil.º, mobilizado pelo
Batalhão de Caçadores 10 (Chaves), para servir
na província ultramarina portuguesa de
Moçambique integrado na Companhia de Caçadores
2321 «OS PIONEIROS DA SERRA DO MAPÉ» do Batalhão
de Caçadores 2837, no período de 1968 a
1970
"Carta
Aberta a um Senhor de Café"
As palavras de V.
Exª. ficaram a roer-me cá por dentro. Há coisas que
não entendo, nem posso entender. De outra maneira,
talvez mais expressiva, mais dramática, há coisas
que seria bem melhor não entender.
Defendo a ideia
de que ainda vale a pena pensar no que se diz a este
pobre mundo, a quem as mãos do comodismo vão
cortando a cabeça.
"Palavra fora da
boca é pedra fora de mão... nunca se sabe a quem vai
ferir".
... Quando um
grupo de soldados apareceu lá dos lados do
"correio", camuflado gasto, cinturão de lona bem
colado ao tronco, todos nós pudemos ler: MUEDA, Batº.
tal... Companhias, tal e tal...
Aqueles homens
vinham lá de cima, dos tiros das minas, das
emboscadas, do campo pelado da verdade, onde; a cada
passo, a cada curva, a cada hora, se trava o desafio
da vida ou da morte. Foram lá acima dar o seu recado
pela boca das armas. Foram lá dizer que não, que na
pequena casa Lusíada, os homens de hoje são como os
homens de ontem e que o corcel da certeza do nosso
brio, da nossa fé, não sabe recuar.
MUEDA, Batº.
tal...Comp.ªs - tal e tal... é um título de glória,
bem agarradinho à alma de quem por lá passa, um
bonito ramo de pétalas rubras a enfeitar a vida dos
que ficam e a dos que partem.
... Vinham
abraçados uns aos outros, contentes, ruidosos,
deixando ler nos olhos e na alegria, de quem cumpre
hoje, sem nada esperar do amanhã.
E lá se foram,
passeio além, sacerdotes da nossa esperança, a
distribuir a sagrada comunhão da alegria, da nossa
certeza, do orgulho de bem cumprir.
Só Vª. Exª. não
gostou. Devia estar a ruminar alguma difícil
digestão de salpicão, de lagosta ou coisa que o
valha. A alegria do pobre é um insulto aos ricos.
As fardas
coçadas, dos caminhos ínvidos da selva, ousaram
passear-se pelas mesmas ruas onde, todos os dias,
Vª.Exª. vai passear o fato de conto de reis o metro,
talhado pelo último figurino dos costureiros da
moda. As mãos calosas de abrir e fechar culatras,
sujas de óleo e cicatrizes, ofenderam os anéis
de Vª. Exª. Aquela legenda de guerra, gravada nos
cinturões, incomodou o esclarecido patriotismo de
quem, com Vª. Exª., nunca saíu dos cafés da baixa.
« Isto de
guerra é uma grande chuchadeira » !...
Pela parte que me
toca,... " muito obrigado...senhor..."
Mas, caso esteja
interessado, venha daí, agarrar-se ao úbero da noite
traiçoeira, onde a boca das armas espreita o momento
de lhe servir umas "papas de sarrabulho",
( têm um sabor muito especial ), quando servidas na
grande mesa da selva, regada a suor, pó e
incerteza...
Venha daí, lá em
cima, as noites são curtas mas, sempre se há-de
arranjar um serão para lhe contarmos a história da « GRANDE
CHUCHADEIRA ».
Contar-lhe-emos a
história daqueles rapazes que deixaram os cursos a
meio, abandonaram as sebentas, guitarras,
família, amigos, noivas e penedos de saudades, para
vir defender as difíceis digestões de Vª.Exª...
Contar-lhe-emos a
história daqueles médicos, de trinta e tal anos, com
consultórios, filhos e clientela que tudo deixaram
para vir mostrar às feridas das grandes selvas, a
primeira bata branca, o primeiro bisturi que a selva
jamais viu...
Havemos de lhe
contar a história desconhecida e grande, heróica e
bela, daqueles soldados que deixaram mulheres e
filhos entregues aos casinhotos das serras, para vir
defender os anéis, esposa e filhos de V.Exª...
Conheço algumas
dessas mulheres, conheço sim senhor. Rôtas,
descalças, sujas, de lata à cabeça, calcorreando os
carreiros da serra, de sol a sol, de pinhal em
pinhal, na desesperada busca de meia dúzia de
tostões com que possam equilibrar a vida, sem
vergonha deste mundo...
Conheço-as, sim
senhor, filharada atrás, enxada na mão, de casa em
casa, oferecendo os braços pela côdea dos filhos...
Havia de vê-las,
- meu rico senhor - Uma lágrima furtiva, ao canto
dos olhos, a enxada bem erguida ao alto, pedindo aos
alquebres da serra a esmola de um grão de centeio.
É por elas,
sobretudo por elas, que peço a Vª. Exª. que, antes
de falar, - NÃO ESQUEÇA - : " PALAVRA FORA DA
BOCA...É PEDRA FORA DA MÃO... NUNCA SE SABE A QUEM
VAI FERIR "
UM
EX-COMBATENTE
(Lourenço Marques - 1970)
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